OUTRAS DIGESTÕES
DIÁRIOS 2021
PRIMEIRAS PANÇAS
TEXTOS
MAPA
Terracota e barro branco.
Alimentos: Arroz, cenoura, azeitona, pão, mel, beterraba, ovo cru e abobrinha.
Reunião de oito Panças em caixa de vidro (17x25x12 cm).
Tempo de registro: 28/11/2020 - 15/01/2021. Total: 50 dias.
Miguel Pereira, Rio de Janeiro.

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A fim de produzir uma investigação mais minuciosa sobre as Panças, realizei, entre 2020 e 2021, três diferentes experiências que foram acompanhadas diariamente. Três Panças foram modeladas e inseridas em recipientes de vidro semi-vedados contendo diferentes tipos de alimentos. Essas Panças foram instaladas lado a lado, em uma casa em Miguel Pereira, Rio de Janeiro. Durante os 50 primeiros dias, produzi anotações e fotografias registrando suas mudanças e comportamentos. Essas anotações foram feitas em um caderno e transcritas para três relatórios que contêm aproximadamente 50 páginas cada um. Para cada dia é apresentada uma foto geral da pança e até quatro fotos de detalhes. Os relatórios estão disponíveis a seguir.

O desenvolvimentos dos bolores cultivados levantou uma série de perguntas sobre as noções de coletividade, corpo vivo, interdependência, apetite e formas de estar no mundo. Essas questões são apresentadas através de um mapa que traça mais livremente os caminhos conceituais percorridos pela minha relação com os bolores durante esse período, junto com as imagens ampliadas dos detalhes mais relevantes e interessantes dos corpos fúngicos.
Terracota e 4 tomates pelados em caixa de vidro vedada.
Tempo de registro: 27/11/2020 - 15/01/2021. Total: 50 dias.
Miguel Pereira, RJ.
Dia 50
Dia 15
Dia 2
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Diário íntimo sem Eu

Nos dias 27, 28 e 29 de novembro de 2020, dei início ao trabalho-relatório que acompanha o desenvolvimento de três Panças. Elas são compostas de dois tipos de argila (barro branco e terracota) e comportam variados alimentos em digestão, dentro de recipientes de vidro. Tal trabalho-relatório consiste em anotar diariamente as mudanças de cada Pança em um caderno, e registrá-las com pelo menos uma foto.

Até então, eu havia modelado e cultivado outras Panças de maneira semelhante, mas sem o exercício rigoroso do acompanhamento diário. A ideia de produzir um relatório foi sugestão do meu orientador de mestrado, Ricardo Basbaum, à qual eu estava relutante no início da pesquisa. Eu não entendia a necessidade de uma prática que imitasse o método científico.

Minha percepção inicial era a de que as Panças tinham uma temporalidade própria e que registrá-las a cada dia não responderia ao movimento genuíno dos fungos ou da argila.

Logo que comecei o relatório percebi a importância do registro diário:

1 – Eu estava em contato constante com a pesquisa
2 – O trabalho se tornava parte da minha vida cotidiana
3 – O registro de assemelhava mais a um diário e menos a um laboratório científico

Essas três constatações convergiram para uma primeira reflexão sobre o trabalho: a criação de um “Diário íntimo sem Eu”. A escrita diária de um intimidade – íntimo pois as Panças eram a princípio um órgão meu fora de mim, meus estômagos externos – me lembrou a prática confessional de escrever intimidades em um diário. Mas, ali eu não escrevia particularidades da minha subjetividade, de um eu lírico romântico que encara e absorve, no sentido simbólico, o mundo. Eu anotava, sim, respostas diárias às mudanças do ambiente: temperatura, umidade, luz, pressão, passagem do tempo – tudo isso influenciava em como estariam as Panças no dia seguinte. Mas essas variações de “humor” não eram interpretações líricas dos eventos, traduções, ou sentimentos. As Panças eram únicas e o que eu registrava no relatório eram afetos e efeito únicos. Mas, como um paradoxo, as Panças demonstravam uma subjetividade despessoalizada, sem ego, sem Eu. Sua existência era apenas o exercício de suas digestões únicas. E a digestão apenas digere: mói, corrói, absorve e elimina. A digestão não para. A digestão é um contínuo entre todos os corpos e matérias.
Esse Diário íntimo impessoal tampouco era científico. Não havia propósito produtivo, desenvolvimento de técnicas de manejo ou tentativa de desvelar qualquer fenômeno da natureza. Aquele relatório não tinha propósito claro e aparente. Sua função principal era ser um Diário íntimo seu Eu. Sem a necessidade de interpretar, de estetizar, de romantizar. Um diário que fosse tal qual a digestão das Panças. Ele era um efeito do cultivo e do acompanhamento desses órgãos.
A segunda reflexão acerca do relatório foi sobre função de me colocar dentro da pesquisa. O registro diário não correspondia aos fungos, à argila, à água ou à comida. As Panças, nada pedem. O tempo delas, de fato, não é o tempo do dia-a-dia, mas um tempo muito mais veloz e dilatado que o meu, um tempo mais forte, mais impositor. As Panças não esperam nada. Elas não me esperariam. A atividade diária era, na verdade, o meu exercício de acompanhá-las, de correr atrás delas e de sua rapidez digestiva. Era a forma de historicizá-las e de não me deixar digerir por completo, por elas.
O diário serve unicamente a mim.
O diário é uma forma de registrar o meu corpo diante de seus corpos. O diário é a maneira de transformar-nos em obra.